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‘O futebol masculino tem muito do que não queremos copiar’, diz Ana Lorena Marche, supervisora de seleções femininas da CBF
Em depoimento ao GLOBO, ela fala como cada detalhe conta no resultado final da Copa do Mundo feminina
A Academia Pérolas Negras está na torcida pela seleção feminina na Copa do Mundo 2023. Com um time de atletas que vem se destacando nos últimos anos, o Pérolas Negras entende, e reforça, a potência do futebol feminino.
Confira abaixo o artigo de Ana Lorena Marche, supervisora de seleções femininas da CBF, para o jornal O Globo, sobre o cenário da seleção feminina do Brasil.
Por Ana Lorena Marche
28/07/2023 23h00 Atualizado 29/07/2023
Ana Lorena Marche, supervisora de seleções femininas da CBF Harold Cunningham/FIFA
A primeira vez a gente nunca esquece. A frase que marcou comercial de TV se encaixa no momento que a seleção feminina de futebol vive. Serve para todas nós que estamos na Austrália. Porque são muitas primeiras vezes. Temos uma técnica mulher, a Pia Sundhage, à frente da nossa seleção em um Mundial. A Pia é uma líder nata, movida por paixão. E ela é apaixonada por futebol. Vive muito tempo desse amor e agora nos leva junto, nos inspira a viver apaixonadas.
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Com ela, um exército de mulheres potentes, especialistas em suas áreas. Chegamos aqui com a maior delegação feminina da história. Somos 56% de mulheres na comissão técnica e apoios — 32 pessoas, sendo 18 mulheres. Saímos de quatro, imagine só. E agora somos maioria.
Isso, no futebol, é algo raro. Nunca tinha vivido. Bizarro pensar em tudo o que já passei e não lembrar de nenhum ambiente em que nós éramos maioria. Ao contrário. Só via homens. Desde a Ferroviária, clube em que coordenei o futebol feminino, até na Federação Paulista de Futebol, também na coordenação do departamento feminino, ou na Confederação Brasileira de Futebol, quando ministrei cursos e aulas. Eu era minoria ou a única. Este é o maior impacto para mim.
Fica claro que é possível ter mulheres em áreas técnicas. Em qualquer área. Podemos ser gestora, fisioterapeuta, segurança ou treinadora. E isso não deixa de ser um recado aos clubes. Muito se fala que não há mulheres capacitadas para isso ou aquilo. Há. Dê oportunidade e verá. Só precisamos de espaço. E agradeço à CBF por ter acreditado que somos capazes.
AMBIENTE INCLUSIVO
A verdade é que temos um grupo diverso. E gosto de falar em diversidade porque com olhares diferentes é que ganhamos força nas discussões. Em um ambiente assim, amplo e inclusivo, as mulheres se sentem seguras para falar. Somos maioria e temos local de fala. Por isso, vejo o quão importante é fazer parte da maioria.
Maior delegação da seleção brasileira feminina de todos os tempos é composta majoritariamente por mulheres — Foto: Thais Magalhães/CBF
Digo que o futebol masculino tem muito a aprender com o feminino. A gente sempre falou que quer chegar ao nível deles. Não necessariamente. O masculino tem muito do que não queremos copiar. Certos assuntos, por exemplo, não são tabu aqui. A gente pode falar o que sente. As jogadoras se impõem e não têm medo. O ambiente do futebol feminino é acolhedor.
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Veja o núcleo de saúde e performance, multidisciplinar e integrado. Desta vez, temos duas vertentes extremamente importantes e que estão totalmente incorporadas ao trabalho da comissão técnica de forma inédita: a psicologia e a ginecologia esportivas. As atletas já tinham ambos acompanhamentos há tempos, mas desta vez a Marina Gusson e a Tathiana Parmigiano constroem a programação do time com a área técnica. Junto com a nutricionista Tiemi Saito, que é especialista em futebol feminino e trabalha no Corinthians, temos uma quantidade fabulosa de dados que usamos a favor das atletas, de forma individualizada. Elas são monitoradas 24 horas por dia, sob a ótica das especificidades da mulher.
DETALHES QUE IMPORTAM
E aí você me pergunta como esses trabalhos ajudam na prática. Ajudam e muito. Todos os detalhes são importantes numa Copa.
Quando a gente trata o ser humano como um indivíduo, com suas características e com respeito, ele sente, saca e corresponde. Cuidadas, abraçadas e abastecidas com o que precisam em todos os aspectos, as jogadoras sabem que “agora é com elas”. Não há mais falta de estrutura e de tecnologia. O que fazemos aqui é profissional.
A lista de iniciativas inéditas é longa, e não canso de lembrar todas essas conquistas. Sei que ainda não temos a dimensão do que tudo isso significa. Talvez, daqui a dez anos, a gente possa olhar para o dia de hoje e entender o que aconteceu. Ainda estou tentando assimilar tudo o que se passa nesta Copa do Mundo, também o meu primeiro Mundial. Gosto de olhar ao redor. Quero fixar imagens. Porque, no dia a dia, no fogo cruzado, tem coisa que pode passar despercebida. E não quero. É muito emocionante, muito gratificante o que estamos vivendo. Hoje, a gente está fazendo História.
Pia é primeira mulher a comandar o Brasil numa Copa do Mundo — Foto: Thais Magalhães/CBF
Pensar nos ineditismos me fez voltar um pouco no tempo e lembrar minha entrada no futebol feminino. Não fui atleta, apesar de amar futebol. Fui para a área dos livros, da especialização, sou formada em Educação Física e mestre e doutora em Ciência do Desporto. Foram sete anos na plataforma da Universidade do Futebol. Quando entrei no futebol, quando coloquei a mão na massa, estava na Ferroviária. Aline Pellegrino (Gerente de Competições da CBF), que hoje é uma amiga, foi quem abriu portas para mim. Lembro quando assinamos a carteira de trabalho das jogadoras, em 2017. Fomos o segundo clube no Brasil, depois do Santos. Elas choraram. Eu chorei.
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SÍMBOLOS DO PROCESSO
Para mim, um marco tão significativo quanto aquele ou quanto este que vivemos agora foi a coletiva para a imprensa da convocação desta seleção. Passei mal depois da divulgação dos nomes, do esquema de trabalho, das novidades e das perguntas dos jornalistas. Depois, me senti leve. Era um ponto sem retorno, como se tudo tivesse começado ali. Foi algo gigante, uma bancada feminina. Mexeu comigo. Era o início do sonho.
Me perguntava: “Será que é verdade?”. Até que, vestida com o uniforme de viagem azul claro, subi as escadas para o avião que nos traria para cá. Esta também foi a primeira vez que a seleção feminina teve uma roupa específica para o embarque.
Pode parecer detalhe, uma bobagem. Mas não. A delegação uniformizada mostra seriedade e profissionalismo. Estar com aquela roupa e todos vestidos da mesma forma mostrou nossa união. Geralmente, a comissão técnica e as atletas usam uniformes diferentes. Mas os melhores jogadores do mundo também têm uniforme de viagem, feitos sob medida e de grife. Por que a gente não teria?
Ana Lorena durante almoço com as jogadoras da seleção — Foto: Thais Magalhães/CBF
Embarcamos em um voo fretado, outra novidade para este grupo. Estamos falando de um esporte de altíssimo rendimento. Estamos falando das melhores atletas brasileiras. Estamos falando da principal competição de futebol no mundo. É preciso ter as melhores preparação e estrutura. E um voo fretado significa ter controle sobre todas as variáveis: horário de saída, alimentação, horário de apagar as luzes para dormir…
Tudo isso não deixa de representar o processo que o próprio futebol feminino passa, de crescimento e afirmação. E é mais especial ainda porque temos uma técnica mulher na beira do campo. Não é só o fato de ter uma treinadora. É ter a Pia. Sempre fomos ensinadas que não temos capacidade para entender o jogo, que não dominamos a tática. Muitas vezes me perguntaram o que é uma linha de impedimento e qual era a escalação do Brasil de 1982. Não vejo mais espaço para este tipo de colocação.
O que vejo é um orgulho imenso de todo um país. Meus cinco sobrinhos, felizes com minhas conquistas, contam na escola que estou aqui. E que verão os jogos da Copa feminina como eu via os da masculina. Com festa. Quantos sonhos estamos despertando e ainda não temos noção? Um dia teremos, e isto aqui será História. Bom, agora a bola vai rolar.